No início de mais um período de ensino remoto de emergência,
multiplicam-se as notícias, opiniões, propostas - vindas de todo o lado - sobre
como fazer ou não fazer, o que deve ser ou não deve ser este ensino. Vamos
então por partes e, se fazem favor, ouçam os professores
Muitos por aí olham para a escola como um circo de
raridades. Não é! Os alunos, como as borboletas, sofrem várias metamorfoses ao
longo da sua passagem pela escola, onde vivem grande parte do seu tempo. É
muitas vezes ao lado dos professores e dos colegas que eles eclodem do seu ovo
e passam por diferentes fases, de larva a crisálida, até ganharem asas. Nós
professores, ensinamos a voar!
Os tempos que atravessamos vieram mostrar a importância do
professor! Os mais distraídos e as vozes mais criticas terão de o admitir. E
agora? O que faríamos sem os professores? No início de mais um período de
ensino remoto de emergência, multiplicam-se as notícias, opiniões, propostas –
vindas de todo o lado – sobre como fazer ou não fazer, o que deve ser ou não
deve ser este ensino. Vamos então por partes e, se fazem favor, ouçam os
professores.
(i) Fomos confrontados sem qualquer aviso prévio com o
encerramento súbito das escolas durante duas semanas quando nos encontrávamos –
alunos, pais e professores – em pleno processo de trabalho e de aprendizagem,
com tarefas distribuídas e momentos de avaliação agendados. Se não está
informado, esta paragem obrigatória terá levado a que, salvo algumas exceções,
grande parte das crianças e dos jovens tenham sido tomados pela inércia.
Enquanto professora, deixe-me dizer-lhe que estas férias forçadas provocaram-me
uma estranho azedume, difícil de ultrapassar. Alguém dúvida de que, na ânsia de
terem de trabalhar, muitos pais deixaram os seus educandos à mercê de videojogos,
filmes e redes sociais, em horas infindáveis de estupidificação voluntária?
(ii) O ensino remoto de emergência que preparámos de uma
semana para a outra no primeiro confinamento de março passado estará prestes a
repetir-se. O que mudou? Praticamente nada. Foram distribuídos computadores
pelos alunos com Apoio Social Escolar para estes poderem aceder às ditas aulas
online. Certo… Contudo, uma leitura atenta do documento Contributos Para A
Implementação Do Ensino A Distância Nas Escolas, orientações enviadas esta
semana (3/1/21) às escolas pelo Ministério da Educação, permite concluir que
tudo o que lá se encontra já tinha sido – mais coisa menos menos, mais link
menos link – enviado o ano passado. E ao deixarem ao critério das escolas a
opção de escolha na aplicação dos horários, vieram criar uma verdadeira manta
de retalhos em que, não havendo qualquer uniformidade, vamos assistir a todas
as aberrações possíveis de imaginar. Assim, pode ler-se no mesmo documento:
“Estipula-se que, não obstante o cumprimento da grelha de horas letivas
semanais, deverá haver um equilíbrio entre atividades síncronas e assíncronas
que proporcione tempos de atenção dispensada em ecrã e tempos de trabalho
assíncrono, em função dos diferentes níveis de ensino e das condições
específicas de cada turma (…)”. Logo, desde as escolas que replicarão
rigorosamente os horários presenciais neste novo sistema, às outras que
praticamente farão o que bem lhes apetecer, teremos alunos e professores a
viver uma terrível situação de iniquidade.
Deixo-vos com a reflexão da colega Anabela Matias que com
enorme acutilância e algum humor, publica no seu blog
(anabelapmatias.blogspot.com) o seguinte texto: “Foi você que pediu 100% das
suas aulas em regime presencial agora transformadas em 100% de aulas síncronas
no E&D? Foi você que pediu 100% das suas aulas em regime presencial agora
transformadas em 75% de aulas síncronas e 25% de aulas assíncronas na E&D?
Foi você que pediu 100% das suas aulas em regime presencial agora transformadas
em 50% de aulas síncronas e 50% de aulas assíncronas no E&D? Foi você que
pediu 100% das suas aulas em regime presencial agora transformadas em 1/3 de
aulas síncronas e 2/3 de aulas assíncronas no E&D?”
(iii) O que irá acontecer, entretanto, na maior parte das
escolas deste país, se não exercermos a nossa verdadeira e principal função que
é refletir?
Limitar-nos-emos a digitalizar o ensino, isto é, a
transferir para o ensino digital exatamente os mesmos métodos e estratégias e
conteúdos e práticas que fazíamos presencialmente. Eis o grande risco que se
avizinha: permitirmos que a escola e as aulas através das plataformas digitais
em utilização sejam uma mera réplica do ensino presencial como, na maior parte
dos casos, sucedeu no ano passado (e que, em muitos casos, foi mesmo melhor do
que nada). Por outro lado, aos alunos e seus encarregados de educação,
importará compreender a necessidade de estabelecer regras, normas e padrões de
comportamento adequadas a este novo modelo a que o documento chama de cidadania
digital. Porém, quando a cidadania presencial é tantas vezes inexistente, como
conseguiremos a digital? Apesar da distância, não somos obrigados a olhar para
um ecrã vazio, a dar aulas para todos os membros da família – que, em alguns
casos, bem precisavam – enquanto ao longe se ouvem os ruídos dos talheres ou,
em casos limite (como a mim me aconteceu) para alunos estendidos no areal.
(iv) Sou defensora acérrima da mudança. Vou mais longe e
considero que deveríamos ter aproveitado a oportunidade para fazer uma
alteração dos currículos exageradamente extensos, das práticas pedagógicas
obsoletas e da utilização eficaz das novas tecnologias de informação que vá
para além da projeção de um filme ou de um powerpoint. O que deveremos mudar,
então?
(v) Não tenho receitas. A pouca formação de qualidade a que
tive acesso mostra-me a necessidade de equilibrar de forma sensata as horas de
aulas síncronas e assíncronas, privilegiando estas útimas para atividades de
trabalho autónomo e/ou colaborativo como a pesquisa, a reflexão, a produção de
textos, a resolução de tarefas e de problemas; atribuir trabalhos que promovam
a criatividade e o pensamento crítico; valorizar o saber ser e o saber estar,
tanto ou mais do que o saber saber, definindo mesmo regras de etiqueta não só
para a aula online mas para a própria vida; apostar na desdramatização dos
exames nacionais, mostrando aos alunos que com mais estudo de qualidade e maior
e melhor gestão do stress e da ansiedade, estes serão apenas mais um momento de
avaliação nas suas vidas; e, por último, mas não menos importante, apostar nos
afetos, na solidariedade, no respeito mútuo e nas aprendizagens que
verdadeiramente importam. Concluo com palavras de uma colega minha, a
professora Paula Coelho Pais, que resume bem o que muitos de nós pensamos neste
momento: “Aprendizagens essenciais? Aprendizagens essenciais são as da vida.
Aprendizagens essenciais são as da solidariedade e da empatia, Aprendizagens
essenciais são as do afeto e da segurança. O importante, neste momento, é
passar às crianças, adolescentes e jovens uma mensagem de segurança, atenção e
de que são efetivamente escutados pelos adultos, em todas as suas apreensões e
receios, sejam eles quais forem. Neste momento as disciplinas fundamentais são
as do Tempo, da Paciência, da Segurança, do Cuidado, do Diálogo, da Reflexão,
da Luz, da Positividade e da Esperança.”
Pela parte que me toca, vou apostar sobretudo naquelas que
são transversais a toda a escolaridade e a toda a vida: a disciplina da
Criatividade e a do Amor, as que verdadeiramente permitem que as borboletas
consigam um dia voar.
Siga o nosso Podcast Circo de Borboletas – Conversa de
Profs, onde damos voz aos professores e às suas histórias. É HORA de
revalorizar, dignificando, esta profissão de afetos e de sonhos. Ao ouvir e
partilhar, estará a ajudar a sociedade a evoluir.
Fonte: Visão | Carta de uma professora a propósito do regresso ao ensino à distância (sapo.pt)
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