No concurso interno de professores para o ano letivo de 2024/2025 mais de 46 mil (46.088) docentes concorreram para sair, o que representa um aumento de 37% face ao último concurso, em 2022, cujo número de pedidos de mudança foi de 33.700. Há agrupamentos onde mais de 90 professores querem mudar para outra escola.
No Agrupamento de Escolas Padre Benjamim Salgado, em Vila Nova de Famalicão, 92 professores do quadro de escola (QE) concorreram para sair. No Agrupamento de Escolas de Vilela, Paredes, são 90. Na lista dos agrupamentos que vão perder mais docentes há 23 escolas com 50 ou mais pedidos de saída. A grande maioria desses agrupamentos situam-se nas zonas Norte e Centro do país e apenas seis na zona Sul. O Diário de Notícias contactou dezenas de docentes para perceber o que os leva a quererem uma mudança e os motivos são variados, sendo o excesso de trabalho a principal causa apontada.
Cristina Mota, porta-voz do movimento Missão Escola Pública, acredita que o modelo de gestão está por detrás desta realidade. “O ambiente nas escolas causado pela autocracia é angustiante”, afirma. Uma docente a lecionar numa zona de Braga, e que não quis identificar-se para não sofrer represálias, partilha a mesma visão. “Sou QE há 16 anos e concorri para sair. As direções das escolas estão muito incrustadas no posto. Na minha escola é a mesma pessoa há mais de 30 anos e o modelo de gestão é o mesmo há décadas. Foi isso que me motivou a tentar sair”, afirma. A docente acrescenta a retirada de poder de decisão aos professores. “Há 10 ou 12 anos os departamentos tinham voz. A nossa participação na escola agora é mais executar o que outros determinam e é muito desmotivante. Somos uns meros executores e guardadores de crianças. É preciso um abanão no sistema educativo. As pessoas andam a arrastar-se nas escolas. As escolas devem voltar ao seu papel de ensinar”, conclui.
Já Isabel Braga, efetiva na Escola de Colos, em Odemira, há oito anos, está a dar aulas em mobilidade no Cercal do Alentejo e concorreu para tentar ficar efetiva na escola onde está colocada. “Em Colos estava sobrecarregada e tive todos os sintomas de burnout, tinha turmas de 2.º e 3.º ciclos, quatro disciplinas, era diretora de turma (DT) e pertencia ao conselho geral. Nesses oito anos fui também coordenadora dos exames. Estava esgotada”, conta.
“Tenho de levar trabalho para casa e trabalhar até à uma ou duas da manhã”
O excesso de trabalho também está na origem da vontade de mudança de uma docente que não se quis identificar, porque não sabe se irá conseguir mudar e não quer “ter problemas”. É QE há mais de 20 anos numa escola do Seixal e está desgastada com o “excesso de trabalho burocrático”. Apesar de estar muito próxima da sua residência, a professora de Educação Musical concorreu para mudar de agrupamento. “As minhas 35 horas de trabalho semanal são, na realidade, muito mais de 50, pois, com a quantidade de turmas que tenho, para fazer o que me compete tenho de levar trabalho para casa e trabalhar, todos os dias até à uma ou duas da manhã”, salienta. No início da carreira, recorda, tinha sete ou oito turmas, agora, mesmo com a redução de horário (a partir dos 50 anos), tem nove – caso contrário teria 11. “Já tive 22 turmas nesta escola. O trabalho de conhecer os alunos, de planificar, de adaptar as atividades, é imenso. Quem quer fazer um trabalho honesto não o consegue com este número de alunos. E temos meninos com educação específica integrada, e tudo isto exige tempo e trabalho”, lamenta.
A docente diz sentir estar a trabalhar pro bono e ter chegado ao limite. A somar ao excesso de trabalho está ainda “a falta de respeito dos alunos e dos encarregados de educação [EE]. Este ano foi demais a indisciplina e a falta de respeito dos EE. Como DT, fico desmotivada com as queixas que faço aos EE por causa, por exemplo, dos palavrões ditos dentro da sala de aula sem ver da parte deles qualquer preocupação. A falta de respeito foi a gota de água, assim como a falta de vontade dos alunos em aprender”. E conta que tem alunos que “colocam a cabeça na mesa e se recusam simplesmente a trabalhar. Este ano com isto tudo entrei numa depressão. Estive até ao fim sem baixa, mas não aguento mais. Ainda na sexta-feira passada meninos da minha DT fecharam uma menina numa sala, sabe-se lá para fazer o quê”, recorda. A professora de Música diz ter chegado a pensar mudar de profissão e confessa-se “completamente desgastada”. “Estou perto de casa e era uma escola onde pensei que me ia reformar, mas temos uma direção que em tempos tinha sensibilidade para estas questões. De há dois ou três anos para cá mudou. Por exemplo, no ano passado cortaram-nos as horas todas para as atividades, como os clubes de teatro e outros. São estes pequenos momentos de prazer que ajudavam a contrabalançar os mais negativos, e já não os temos.”
“Tratam-nos como se fôssemos guardadores de crianças”
Patrícia Carreira, professora do 1.º ciclo, mas com habilitações também para o 2.º, concorreu para sair da escola porque quer mudar para o 2.º ciclo. Há mais de 20 anos na mesma escola, na Margem Sul, diz ter chegado ao limite. “Sempre gostei muito do que faço e de trabalhar com crianças, mas quero mudar de grupo de recrutamento e tem a ver com as condições de trabalho. Gostei muito até a escola se transformar num depósito de crianças. A atribuição de tarefas que nos dão e que não fazem parte da nossa função, como vigiar recreios e hora de almoço, ou saber se as crianças já foram ao dentista, são esgotantes.” E salienta ainda o facto de não ter direito à redução de horário, à semelhança dos professores dos outros ciclos, e não ter qualquer redução para os cargos que lhe são atribuídos, como a direção de turma. “Nas escolas de 1.º ciclo não há sequer uma secretaria para tratar qualquer assunto burocrático.”
As mudanças das regras de aposentação (anteriormente tinham direito a aposentar-se mais cedo por terem um horário alargado) e a falta de redução de horário também pesaram na decisão de Patrícia Carreira. “Depois há toda uma falta de respeito pela figura do professor e educador. Tratam-nos como se fôssemos guardadores de crianças e é esperado de nós uma série de obrigações que nada tem a ver com a função de ensinar”, frisando que que “quando falta uma professora, os alunos são distribuídos pelas outras turmas”, chegando a ter mais de 40 crianças numa sala. “As condições de trabalho são cada vez piores. Prolongou-se mais uma vez o calendário escolar, os professores e as crianças estão cansados. Não temos, por exemplo, recursos para os alunos estrangeiros e cai tudo em cima de um só professor. Vou sair da minha escola porque não consigo trabalhar mais. E, como eu, muitos professores com habilitação para o 2.º estão a tentar mudar”, desabafa. Patrícia Carreira diz adorar lecionar no 1.º ciclo mas já não aguentar fazê-lo neste modelo de gestão. “Há 15 ou 20 anos não era assim, agora é um depósito escolar.”
Representante dos diretores acredita que as vagas vão ser preenchidas
Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), acredita que “o sistema irá encarregar-se de colocar docentes nas escolas onde os professores querem sair”. Questionado pelo DN sobre os motivos que levaram mais de 46 mil docentes a querer mudar de QE, o responsável acredita ser sobretudo a vontade de se aproximarem da área de residência. “De uma forma global, podem não estar satisfeitos com aquela comunidade educativa para a qual estão a trabalhar, mas o primeiro critério é sempre ficar mais perto de casa.” Contudo, diz, “numa escola onde muitos querem sair pode haver motivos coletivos”. Já sobre os “danos” para os alunos, admite que “uma saída em massa, se todos conseguirem, leva a uma grande renovação e não haverá grande estabilidade nessas escolas, principalmente no Interior, onde todos os anos o corpo docente é renovado”. Mas, apesar dos números expressivos de professores a concurso para mudança de QE, diz que ficaria “admirado se essas vagas não fossem preenchidas”. “Pode haver QE não ocupados, mas são milhares de professores a concorrer. Somos mais de 100 mil docentes”, explica. O presidente da ANDAEP alerta para outro problema: “Pode dar azo a atestados médicos por parte dos professores.”
Arlindo Ferreira, diretor do Agrupamento de Escolas Cego do Maio e autor do blogue ArLindo (um dos mais lidos no setor da educação), também entende que o principal fator de mudança é a aproximação à área de residência, mas “poderá haver casos onde as pessoas não se estejam a sentir bem ou estejam a ter excesso de trabalho”. O responsável lembra que, quando há concurso interno, “há sempre muita instabilidade nas escolas”, tornando o trabalho dos diretores muito “difícil”. “É difícil para os diretores porque cada escola tem a sua forma de trabalhar e temos de ensinar o funcionamento da escola aos professores que chegam.”
Já do ponto de vista do aluno, defende, “acaba por ser prejudicial, quando há muitas mudanças de docentes, principalmente no 1.º ciclo. É difícil para os mais novos”.
Fonte: Mais de 46 mil professores efetivos querem mudar de escola (dn.pt)
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